A celebração dos 80 anos da vitória chinesa na Segunda Guerra Mundial foi marcada por uma série de eventos estratégicos e de grande impacto geopolítico, que destacaram as ambições militares e diplomáticas de Pequim. Entre eles, o maior desfile militar já realizado pela China, encontros da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) e diálogos bilaterais de alto nível, como o de Xi Jinping com Narendra Modi. Esses eventos refletem o desejo da China de reafirmar sua posição como potência global e avançar sua visão para uma nova ordem internacional, enquanto buscava diálogos pragmáticos para amenizar disputas regionais, especialmente com a Índia.
Os eventos ocorreram na cidade de Pequim, na China, durante a primeira semana de setembro de 2025. O desfile militar aconteceu em 3 de setembro, enquanto a cúpula da Organização de Cooperação de Xangai reuniu líderes de várias nações entre os dias 31 de agosto e 1º de setembro. Já o encontro entre Xi Jinping e Narendra Modi aconteceu à margem dessa cúpula bilateral, destacando-se como um esforço para reduzir as tensões históricas e buscar uma coexistência estratégica entre os dois gigantes asiáticos.
As relações entre China e Índia ao longo das décadas têm sido marcadas por disputas e cooperação. Apesar dos conflitos fronteiriços, como os enfrentamentos no vale de Galwan em 2020, ambos os países têm demonstrado interesse em manter diálogo e buscar estabilidade regional. Ao mesmo tempo, permanecem como rivais estratégicos em questões econômicas e territoriais, reforçando a necessidade de uma relação pragmática. Tais dinâmicas oscilam entre tentativas de aproximação, como a retomada recente de acordos comerciais e de fronteira, e um antagonismo fundamentado em desconfianças históricas.
A Organização de Cooperação de Xangai (OCX), criada em 2001, desempenha um papel central na integração e segurança regional da Ásia, reunindo potências como China, Rússia e Índia, além de Paquistão e outros países da Ásia Central. Originalmente focada em questões de segurança e combate ao terrorismo, a organização expandiu seu escopo para incluir iniciativas econômicas e diplomáticas. A cúpula de 2025 reforçou o papel da OCX como um fórum estratégico para fortalecer a liderança chinesa no Sul Global e promover um modelo multipolar de governança.
Nesse contexto, a Iniciativa de Governança Global, lançada pela China em 2023, destaca-se como um instrumento para reformar o sistema internacional em um cenário de crescentes disputas geopolíticas. A proposta almeja criar um modelo de governança mais inclusivo e multipolar, reduzindo a dependência de instituições lideradas pelas potências ocidentais. Por meio dessa iniciativa, a China busca consolidar sua posição como líder global, promovendo novos padrões para a colaboração internacional e reforçando sua influência sobre nações emergentes e o Sul Global.
No ínterim verificado, como o Brasil pode aproveitar o atual cenário de reforma da ordem mundial para ampliar sua presença global e reforçar sua autonomia diplomática. Além disso, como o exemplo indiano pode servir para o País?
A seguir, os eventos relativos ao panorama acima citado serão analisados, visando uma melhor compreensão da conjuntura mundial, concluindo-se sobre possíveis oportunidades e lições aprendidas para o Brasil.
China e Índia: Breaking the Ice?
O artigo de Sylvia Malimbaum “Chine – Inde : un rapprochement sous contrainte” para o IFRI (Institut Français des Rélations Internationales) aborda a reaproximação pragmática entre China e Índia, marcada por encontros de alto nível, incluindo o de Narendra Modi e Xi Jinping durante a cúpula da Organização de Cooperação de Xangai. Após anos de tensão exacerbada pelos confrontos no vale de Galwan em 2020, os dois países adotaram medidas para reduzir o atrito, como a retomada de voos diretos e acordos sobre gestão de fronteiras. No entanto, desconfianças persistentes dificultam um retorno pleno à cooperação e mantêm o relacionamento em uma posição delicada.
No contexto territorial e estratégico, disputas na fronteira do Himalaia seguem sem resolução, e Pequim se beneficia de vantagens territoriais enquanto mantém suas tropas na região. Além disso, a parceria chinesa com o Paquistão e projetos hídricos no Tibete reforçam as preocupações indianas sobre um cerco estratégico. Adicionalmente, há crescente inquietação em Nova Délhi sobre as atividades navais chinesas no Oceano Índico e sua influência em países vizinhos, fatores que agravam o antagonismo bilateral.
Do lado indiano, há um esforço para equilibrar os custos econômicos e militares decorrentes da rivalidade com a China. Apesar de percepções de ameaça chinesa, a Índia permanece economicamente dependente de Pequim, com importações que somam quase 100 bilhões de dólares. O programa “Make in India” ainda é limitado por essa dependência estrutural. Enquanto isso, Delhi sofre constrangimentos adicionais devido a recentes tensões comerciais com os Estados Unidos, comprometendo sua relação estratégica com Washington e ampliando sua vulnerabilidade geopolítica.
Infere-se, dessa maneira, que a aproximação sino-indiana se revela mais como uma necessidade estratégica do que uma aliança genuína. Pequim tira proveito do enfraquecimento da relação entre Índia e EUA, enquanto Nova Délhi tenta proteger seus interesses econômicos e estratégicos em um cenário global instável. No entanto, a desconfiança mútua e disputas não resolvidas tornam o degelo frágil e incerto, sendo mais uma coexistência forçada do que uma parceria sólida.
A Clara Mensagem da Cerimônia dos 80 Anos do Dia da Vitória
Em 3 de setembro, a China realizou seu maior desfile militar para marcar o 80º aniversário de sua vitória contra o Japão e o fim da Segunda Guerra Mundial. O evento, organizado pelo Partido Comunista Chinês (PCC), destacou as ambições políticas e militares de Pequim e sua visão de uma nova ordem internacional. Xi Jinping utilizou o discurso no evento para reforçar a imagem da China como uma potência promotora de paz e estabilidade globais, contrastando com os Estados Unidos. Ele reiterou a importância da “revitalização da nação chinesa” e convocou a população a apoiar a liderança do PCC.
O desfile mostrou o crescente alinhamento da China com regimes autoritários. A presença de Vladimir Putin e Kim Jong Un, junto a líderes de 26 nações, principalmente do Sul Global, fortaleceu a mensagem de oposição à hegemonia americana e a defesa de um mundo multipolar. Este encontro também marca um momento histórico devido à reunião pública entre os líderes da China, Rússia e Coreia do Norte após mais de seis décadas.
Foram apresentadas pela primeira vez unidades do modelo “Quatro Serviços e Quatro Armas” do Exército de Libertação Popular (ELP), além de mais de 100 sistemas de armas modernas, incluindo mísseis balísticos intercontinentais, hipersônicos, armas a laser e veículos não tripulados. Essas tecnologias avançadas reforçam a modernização militar da China e destacam sua capacidade de enfrentar ameaças estratégicas, incluindo os Estados Unidos.
O desfile destacou uma impressionante coleção de sistemas de armas avançados e modernos, evidenciando o foco da China em sua atualização militar. Entre os itens exibidos estavam mísseis balísticos intercontinentais como o JL-3 e o DF-61, ambos com capacidades nucleares e alcance estendido, além do hipersônico YJ-21, apelidado de “destruidor de porta-aviões”. Outros destaques incluíram armas a laser como o LY-1, sistemas de defesa aérea como o exoatmosférico HQ-29 e veículos não tripulados como o AJX002, com design furtivo e tecnologia de inteligência artificial. A exibição de mísseis antinavio hipersônicos – como os YJ-17, YJ-19 e YJ-20 – reforçou o foco do Exército de Libertação Popular (ELP) em plataformas de alta precisão e manobrabilidade avançada.
Esses materiais foram escolhidos não apenas por sua sofisticação tecnológica, mas também por sua relevância estratégica, alinhando-se às prioridades da China de projetar poder militar e se preparar para conflitos de alta intensidade contra adversários como os Estados Unidos.
O evento também serviu como um instrumento diplomático, inserindo-se na semana da cúpula da Organização de Cooperação de Xangai e no lançamento da “Iniciativa de Governança Global” chinesa. Esses esforços reforçam o papel da China como uma potência influente no Sul Global, ao mesmo tempo em que desafia a ordem internacional liderada pelos EUA.
Depreende-se que o desfile evidenciou não somente a confiança militar e política da China, mas também refletiu os desafios de um cenário internacional competitivo. O discurso de Xi Jinping traçou paralelos entre a resistência histórica da China e sua posição de liderança atual, destacando a necessidade de cooperação global diante de conflitos. No entanto, a presença estratégica de líderes como Putin e Kim Jong Un e a exibição de armas sofisticadas enviaram um forte sinal de oposição ao domínio ocidental e reafirmaram a ambição da China de moldar a ordem global segundo seus interesses.
Conclusões para Estratégia
Em um cenário marcado pela celebração dos 80 anos da vitória da China na Segunda Guerra Mundial, o maior desfile militar já realizado pelo país e a cúpula da Organização de Cooperação de Xangai (OCX) foram utilizados por Pequim como ferramentas para reafirmar sua ascensão como potência global. Esses eventos reforçaram não apenas as capacidades militares da China, mas também suas ambições diplomáticas e econômicas para moldar uma nova ordem mundial multipolar, especialmente ao buscar fortalecer alianças regionais e amenizar conflitos históricos, como no caso do diálogo pragmático com a Índia.
Em síntese, esses eventos evidenciam o papel proativo da China tanto no fortalecimento de parcerias no Sul Global quanto na projeção de poder militar e estratégico em face de tensões com as potências ocidentais. Pequim se posiciona como alternativa à liderança global, enquanto a Índia busca equilibrar interesses econômicos e estratégicos diante da pressão de potências como China e Estados Unidos. Nesse contexto, a OCX se apresenta como um espaço relevante para promover integração regional e articulação de interesses compartilhados entre diversos países emergentes da Ásia.
O Brasil, por sua vez, pode explorar esse momento de transição na geopolítica internacional para ampliar sua presença e influência global, priorizando parcerias estratégicas com o Sul Global e fortalecendo sua participação em fóruns multilaterais como o BRICS. Além disso, o Brasil pode se posicionar como um mediador capaz de desenvolver um discurso que equilibre interesses distintos entre grandes potências, demonstrando uma liderança responsável e comprometida com a diversificação de alianças estratégicas e novas oportunidades econômicas.
O exemplo da Índia serve como inspiração para o Brasil na busca por pragmatismo diplomático e equilíbrio estratégico. Assim como Nova Delhi equilibra suas relações com os Estados Unidos e a China, Brasília pode adotar uma postura independente que lhe permita transitar entre os grandes blocos de poder global, evitando alinhamentos rígidos. Esse modelo de atuação asseguraria autonomia ao Brasil em um cenário cada vez mais polarizado, ao mesmo tempo em que maximizaria benefícios econômicos, tecnológicos e geopolíticos.
Por fim, compreender a conjuntura internacional atual é fundamental para o reposicionamento do Brasil como um player relevante no cenário geopolítico global. A análise dos movimentos estratégicos de potências como China e Índia permite ao Brasil identificar caminhos para reforçar sua soberania e influência, adaptando-se ao surgimento de novas dinâmicas e oportunidades globais. Com isso, o país pode se posicionar de maneira mais assertiva no xadrez internacional, promovendo seus próprios interesses enquanto contribui para uma ordem mundial mais equilibrada e inclusiva.
A ascensão da China como ator global tem redefinido as dinâmicas geopolíticas e econômicas em diversas regiões, e a América Latina emerge como um terreno crucial nessa transformação. Um relatório geopolítico recente, “L’AMÉRIQUE LATINE, UNE RÉGION PRIORITAIRE POUR LA CHINE“, elaborado pelo IRIS (Institut de Rélations Internationales et Stratégie) para a Agence Française de Développement (AFD), oferece uma análise aprofundada dessa relação multifacetada, destacando suas complexidades, oportunidades e desafios. Para os clientes da ZH Research, compreender essas nuances é fundamental para navegar o cenário global e identificar avenidas estratégicas no mercado brasileiro.
A Profundidade da Relação Sino-Latino-Americana: Um Novo Eixo Geoeconômico
Desde o início dos anos 2000, a relação entre a China e a América Latina tem crescido e se diversificado exponencialmente, consolidando-se como uma das manifestações mais vibrantes da ascensão do “Sul Global”. O relatório aponta que o Fórum China-CELAC, realizado em Pequim em maio de 2025, marcou uma década de cooperação e diálogo, sublinhando a prioridade que a China confere à região.
No campo comercial, os números são impressionantes. O intercâmbio entre a China e os países latino-americanos saltou de US$ 10 bilhões em 2000 para mais de US$ 518 bilhões em 2024, com projeção de alcançar US$ 700 bilhões até 2035. Esse crescimento transformou a China no segundo maior parceiro comercial do subcontinente latino-americano desde 2011, e o primeiro para os países sul-americanos a partir de 2015. É notável que, em muitos casos, o volume de fluxos comerciais entre a China e a América Latina já supera o dos Estados Unidos, sendo o México a exceção que ainda mantém os EUA como principal parceiro oficial da região como um todo. A China tornou-se o principal parceiro de países como Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Paraguai, Peru e Uruguai, e o segundo para a maioria dos demais. Além disso, Pequim firmou acordos de livre comércio com Chile, Costa Rica, Equador, Nicarágua e Peru, e discute com Uruguai, El Salvador e o Mercosul.
A dinâmica comercial é marcada por uma complementariedade assimétrica. A América Latina funciona como um grande fornecedor de matérias-primas, produtos agrícolas (como soja, grãos, carnes, café, açúcar), recursos naturais (minerais como cobre, ferro, metais críticos) e hidrocarbonetos para a China, buscando a segurança de seu abastecimento. Notavelmente, a China importa do Brasil 75% de suas necessidades de soja, e o Brasil destina mais de 70% de sua produção anual à China. Em contrapartida, a China exporta para a região produtos manufaturados e bens de consumo de alto valor agregado (eletrônicos, eletrodomésticos, carros elétricos, têxteis, equipamentos de telecomunicações, máquinas, informática), sendo o Brasil um de seus principais destinos para esses produtos.
Além do comércio, o investimento chinês na região é substancial. A América Latina é o segundo maior destino de Investimento Direto Estrangeiro (IDE) de Pequim, atrás apenas da Ásia. Entre 2003 e 2022, a China teria investido US$ 187,5 bilhões na região, concentrando-se em setores como infraestrutura (transporte, extração de recursos naturais, construções agrícolas, comunicação, energia). Países como Argentina, Brasil, Chile e Peru foram os maiores beneficiários. De 2005 a 2024, 294 projetos de infraestrutura foram financiados por Pequim, totalizando US$ 129 bilhões. O relatório destaca cinco grandes empresas chinesas (China Communications Construction Company, Power ConstructionCorporation of China, China Railway Construction Corporation, State Grid Corporation of China, China National Petroleum Corporation) como protagonistas nesses investimentos.
No setor de mineração, os investimentos chineses são particularmente massivos em metais críticos, como o lítio (presente no “Triângulo do Lítio” entre Argentina, Bolívia e Peru) e o cobre (Chile e Peru). De 2018 para cá, a China investiu US$ 11 bilhões na extração de lítio e se tornou a principal compradora de materiais críticos latino-americanos. Embora os investimentos chineses tenham diminuído após a pandemia (de uma média de US$ 14,2 bilhões/ano entre 2010-2019 para US$ 6,4 bilhões em 2022), a natureza desses investimentos está se diversificando, com maior foco em energias renováveis, desenvolvimento sustentável, construção de fábricas “greenfield“, digitalização, e eletrificação da indústria.
No âmbito financeiro, a China superou o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) como principal credor da América Latina, concedendo US$ 120 bilhões em 133 créditos entre 2005 e 2023, majoritariamente através do China Development Bank (CDB) e do Exim Bank. Além disso, a China também se integrou ao BID e ao Banco de Desenvolvimento do Caribe (BDC).
A região também se insere nas “Novas Rotas da Seda” (Belt and Road Initiative – BRI), lançadas em 2013, com 22 países latino-americanos participando. O megaporto de Chancay, no Peru, inaugurado em novembro de 2024, é um marco dessa iniciativa, visando ser a principal porta de entrada da BRI na região e um hub comercial entre os países latino-americanos e a China. O Brasil, por exemplo, planeja usar Chancay para intensificar e facilitar suas exportações para a China, que representa 30% de seu comércio exterior, por meio das novas “rotas de integração e desenvolvimento sul-americanas”.
A Disputa Geopolítica: Pequim versus Washington
A crescente influência chinesa na América Latina se tornou uma preocupação central para os Estados Unidos. O relatório descreve como a China tem sido sucessivamente categorizada por Washington como um “desafio hegemônico”, “ameaça à segurança nacional”, “rival estratégico” e, mais recentemente, uma “ameaça existencial” sob o retorno de Donald Trump ao poder. Os EUA têm adotado medidas concretas para conter essa influência, como a saída do Panamá das Novas Rotas da Seda e o estacionamento de tropas americanas em torno do Canal do Panamá. Há também a pressão sobre o México devido à reexportação de produtos chineses para os EUA, e críticas ao Porto de Chancay, no Peru. Na Argentina, a presença da base espacial chinesa em Neuquén e a criação de uma base naval conjunta com os EUA em Ushuaia refletem a intensificação da rivalidade.
Washington argumenta que os investimentos chineses em infraestruturas críticas e a cooperação científica e tecnológica (telecomunicações, internet, espaço) podem ter “duplo uso”, permitindo a Pequim espionar os EUA e manipular seus aliados. Os EUA contam com seu Comando Militar do Sul (US Southern Command) e a IV Frota da US Navy para manter sua vantagem no “hemisfério ocidental”, que consideram um “espaço crítico na competição mundial”. A cooperação anti-drogas e anti-criminalidade organizada também serve como pretexto para a presença militar e de conselheiros dos EUA na região.
Por sua vez, a China posiciona a América Latina como parceira e aliada na construção de uma “comunidade de destino para a humanidade” e na defesa de um mundo multipolar, contra o unilateralismo ocidental. Sua diplomacia se baseia nos “Cinco Princípios” (respeito à soberania, não agressão, não-ingerência, igualdade e coexistência pacífica) e em iniciativas como a Global Development Initiative (GDI), Global Security Initiative (GSI) e Global Civilization Initiative (GCI), que promovem desenvolvimento sustentável, segurança coletiva e diálogo cultural. A questão de Taiwan também é um ponto de tensão, com a China buscando diminuir o número de países na região que reconhecem a ilha.
Implicações para a América Latina e Oportunidades para Clientes Brasileiros
A relação sino-latino-americana, embora densa e representativa das dinâmicas Sul-Sul, permanece assimétrica. O relatório destaca a “reprimarização” das economias latino-americanas e a aceleração de sua desindustrialização, devido ao déficit de competitividade frente às importações chinesas. Essa dependência tem gerado debates crescentes na região, com elites e populações expressando reservas sobre as consequências de uma relação econômica desequilibrada, bem como preocupações socioambientais com certos projetos chineses.
Para o Brasil, essa situação representa um desafio estratégico. Seus laços econômicos e comerciais com a China são vitais, agindo como um amortecedor contra ofensivas econômicas de outros parceiros, como as tarifas americanas.
Nesse cenário de crescente rivalidade geopolítica, a pressão dos Estados Unidos sobre a América Latina, e particularmente sobre o Brasil, intensifica-se. A recente decisão da administração Trump de impor tarifas de 50% sobre certos produtos brasileiros a partir de 1º de agosto de 2025 é um exemplo contundente dessa estratégia. Embora oficialmente justificadas por questões comerciais específicas ou para proteger setores industriais americanos, essas medidas podem ser interpretadas como uma tentativa de Washington de penalizar a crescente dependência comercial do Brasil em relação à China e de incentivar uma reorientação de suas parcerias econômicas. Tal movimento reflete a preocupação americana com a presença chinesa em seu “hemisfério continental”, buscando dissuadir laços econômicos que possam, de alguma forma, fortalecer a posição de Pequim na região.
Para os clientes brasileiros, o aumento dessas tarifas adiciona uma camada de complexidade ao planejamento de exportações, elevando custos e potencialmente diminuindo a competitividade de seus produtos no lucrativo mercado norte-americano. Este contexto reforça a urgência da diversificação de mercados, conforme já mencionado, não apenas como uma forma de buscar novas oportunidades, mas também como uma estratégia de mitigação de riscos frente a decisões comerciais motivadas por tensões geopolíticas. Empresas brasileiras são, assim, desafiadas a aprofundar sua análise de cadeias de suprimentos e destinos de exportação, buscando um equilíbrio que lhes permita navegar com resiliência entre as demandas de seus maiores parceiros comerciais globais.
Diante desse panorama, surgem diversas oportunidades estratégicas para os clientes brasileiros:
Exportação de Commodities e Alimentos: A demanda chinesa por produtos agrícolas e matérias-primas brasileiras (soja, carne, minério de ferro, etc.) é robusta e continuará a ser um pilar das exportações. Clientes no agronegócio e na mineração devem focar na eficiência da produção e na certificação de qualidade para atender a esse mercado gigante e exigente.
Infraestrutura e Logística Estratégica: O interesse chinês em projetos de infraestrutura na América Latina, como o megaporto de Chancay, abre caminho para oportunidades em logística, transporte marítimo e terrestre. Clientes com expertise em desenvolvimento portuário, ferrovias e integração regional podem explorar parcerias ou desenvolver serviços complementares às novas rotas de escoamento de produção para o Pacífico. A criação das “rotas de integração e desenvolvimento sul-americanas” pelo Brasil é um sinal claro dessa tendência.
Investimentos em Energia Renovável e Sustentabilidade: A mudança na natureza dos investimentos chineses para energias renováveis, desenvolvimento sustentável, fábricas “greenfield” com práticas duráveis e digitalização das economias representa uma área de grande potencial. Clientes brasileiros no setor de energia limpa, tecnologias sustentáveis, soluções digitais e “fintech” podem atrair capital chinês ou firmar parcerias para co-desenvolvimento de projetos.
Tecnologia e Inovação: O foco chinês em 5G, telecomunicações e inteligência artificial na região sugere um campo fértil para empresas de tecnologia brasileiras. Isso pode envolver a busca por investimentos, a formação de joint ventures, ou o desenvolvimento de soluções adaptadas ao mercado latino-americano com base na tecnologia chinesa.
Diversificação de Mercados e Cadeias de Valor: O relatório enfatiza a necessidade de a América Latina diversificar suas estruturas produtivas e seus parceiros econômicos. Para clientes brasileiros, isso significa não colocar “todos os ovos na mesma cesta” (EUA).
Navegação da Rivalidade Geopolítica: O Brasil, como uma economia de peso na região, está em uma posição estratégica para negociar com ambos os blocos (EUA e China). Clientes com operações ou ambições internacionais devem estar cientes das tensões geopolíticas e buscar uma abordagem equilibrada, que minimize riscos e maximize oportunidades, aproveitando a competição entre as potências para obter melhores condições de comércio e investimento.
Por fim, com o estudo do documento em questão, torna-se válido inferir a necessidade de visualização de estratégias de mercado a fim de buscar a resiliência comercial em meio à uma gestão de riscos verificados por meio da análise do panorama geoestratégico atual, fortalecendo a economia nacional pelo incremento da prospecção de possíveis parcerias sino-brasileiras.
Este artigo é o terceiro de uma trilogia iniciada uma contextualização sobre as mudanças de comportamento intergeracionais centradas nos conceitos de “bai lan” e “tang ping”, e que estão gerando novas tendências de consumo na juventude chinesa. Se você não leu os artigos anteriores ainda, clique aqui e aqui.
No cenário cultural e econômico da China contemporânea, onde as pressões sociais e aspirações individuais se entrelaçam, surgem fenômenos que, à primeira vista, parecem desconectados, mas que, em uma análise mais aprofundada, revelam uma intrincada teia de significados. Este terceiro e último artigo da nossa trilogia explora a convergência entre o universo lúdico de Labubu, um ícone global da cultura pop, e o caso da Pidan, uma inovadora empresa de artigos para pets cuja identidade visual e filosofia de marca ecoam sutilmente os princípios do “tang ping” e do “bai lan”. Essa conexão inesperada nos oferece uma lente única para compreender como as tendências de consumo e filosofias de vida se influenciam mutuamente, moldando as escolhas e o bem-estar da juventude chinesa.
Labubu: O Príncipe da “Guzi Economy” e do “Kidulting”
Cantora tailandesa-coreana LISA carregando dois Labubus em uma bolsa Louis Vutton; fonte: @lalalalisa_m.
Labubu, com sua estética “feia-fofa” (丑萌, chǒu méng) e personalidade travessa, transcendeu o status de mero brinquedo para se tornar um fenômeno cultural global. Criado pelo artista Kasing Lung em 2015 e popularizado pela empresa POP MART através do conceito de “blind boxes” (caixas-supresa), o boneco Labubu representa o ápice da “guzi economy”, a economia de colecionáveis que atrai um público adulto significativo.
Seu boom global começou por volta de 2019-2020, quando colecionadores asiáticos e ocidentais se apaixonaram por suas edições limitadas, como a série “The Monsters”, e seu design viralizou em redes como Instagram e TikTok. Em 2021, um boneco Labubu “Spooky Boo” da coleção “Molly x The Monsters” esgotou em minutos na China, com revenda atingindo até 10 vezes o preço original (cerca de US$ 1.000 no mercado secundário). A POP MART reportou em 2022 que a linha The Monsters foi uma das top 3 mais vendidas globalmente, impulsionando a receita da empresa para ¥ 4,6 bilhões (cerca de R$ 3,4 bilhões).
Sua popularidade é impulsionada não apenas pelo design único com apelo contemporâneo, mas também pela emoção de surpresa, a busca por edições limitadas e o endosso de celebridades como LISA da banda de K-pop Blackpink e a cantora britânica Dua Lipa. Para muitos, colecionar Labubu é uma forma de “kidulting”, um mecanismo de enfrentamento saudável que permite aos adultos encontrarem conforto e escapismo na nostalgia e na ludicidade, aliviando as pressões da vida moderna.
O fascínio por Labubu e outros colecionáveis reflete uma busca por bem-estar emocional. Em um mundo onde a produtividade e o sucesso material são constantemente exigidos, a “guzi economy” oferece um refúgio, um espaço onde a alegria pode ser encontrada na aquisição e na posse de objetos que evocam emoções positivas. É uma forma de autocuidado, onde a conexão com o nostálgico serve como um contraponto ao estresse do dia a dia. Labubu, nesse sentido, não é apenas um item de consumo, mas um símbolo de uma geração que busca equilíbrio e felicidade em suas próprias condições.
Pidan: A Estética do “Tang Ping” no Universo Pet
Produto Travel Window Pet Carrier Backpack, disponível em https://pidan.store/
Nos últimos anos, a China tem visto um crescimento significativo na adoção de animais de estimação, com os gatos se tornando especialmente populares entre os moradores urbanos. Esse aumento está ligado a mudanças sociais, como a urbanização acelerada, o crescimento da classe média e o estilo de vida solitário de muitos jovens profissionais. O dono médio de gatos na China tende a ser jovem (entre 20 e 35 anos), morador de cidades grandes, como Xangai ou Pequim, e muitas vezes vive sozinho ou em apartamentos compactos, onde os gatos são vistos como companheiros ideais por sua adaptabilidade a espaços menores. A renda média desses tutores geralmente se enquadra na classe média urbana, com poder de consumo voltado para produtos premium, como rações especializadas e acessórios para pets. Além disso, a cultura digital impulsionou o amor por gatos, com muitos tutores compartilhando fotos e vídeos de seus pets em redes sociais, reforçando a tendência.
O crescente número de pessoas que buscam conforto em pets, especialmente no contexto de pressões sociais e econômicas, é um reflexo direto da necessidade de encontrar mecanismos de enfrentamento. A relação com um animal de estimação oferece amor incondicional, companhia e uma rotina que pode ser um antídoto para o estresse e a solidão.
A Pidan, uma empresa para artigos para pets, é um exemplo fascinante de como a filosofia do “tang ping” pode se manifestar no design e na identidade de uma marca. Embora não explicitamente ligada ao movimento, a estética de seus produtos e sua comunicação ressoam com a ideia de “esparramar-se”. A marca adota um design minimalista, com linhas limpas e cores suaves, que transmitem uma sensação de calma, simplicidade e descomplicação. Essa abordagem visual contrasta com a agitação e a complexidade do mundo exterior, oferecendo um refúgio e tranquilidade para os donos de pets e seus animais.
A mensagem da Pidan, “Humanos precisam de gatos, pois eles conseguem congelar as emoções incômodas das horas solitárias em uma calmaria deliciosa”, encapsula perfeitamente a essência do “tang ping” no contexto do bem-estar. Ela sugere que a interação com animais de estimação, especialmente gatos, pode ser uma fonte de serenidade e alívio emocional, permitindo que os indivíduos “congelem” suas angústias e encontrem calma na solidão. Essa ideia se alinha diretamente com a busca por uma vida de “baixo desejo” e a despriorização de expectativas sociais que caracterizam o sucesso. Em vez de buscar felicidade em conquistas externas e na incessante “rodinha de hamster”, a Pidan sugere que a paz pode ser encontrada na simplicidade da companhia de um gato e na aceitação de um ritmo de vida mais tranquilo.
Nesse sentido, a Pidan não vende apenas produtos para pets; ela vende uma promessa de bem-estar, de um estilo de vida mais calmo e de uma conexão emocional que ressoa com os anseios de uma geração que busca redefinir o que significa viver bem.
Um novo paradigma na relação entre Consumo e Existência
A análise de Labubu e do caso Pidan revela um novo paradigma de consumo e existência na China moderna. Longe de serem meras tendências passageiras, esses fenômenos refletem uma profunda reavaliação dos valores e prioridades da juventude chinesa. A busca por conforto, a valorização do bem-estar emocional e a rejeição às pressões excessivas moldam as escolhas de consumo e as filosofias de vida. Seja através da alegria do colecionismo de brinquedos de arte ou da serenidade proporcionada pela companhia de um pet, a geração atual está encontrando suas próprias maneiras de navegar pelas complexidades da vida, construindo um futuro em que o significado e a felicidade são definidos em seus próprios termos. Essa convergência de cultura pop e filosofia de desapego é um testemunho da resiliência e da criatividade humana em face dos desafios do século XXI.
Este artigo é o segundo de uma trilogia de contextualização sobre as mudanças de comportamento intergeracionais centradas nos conceitos de “bai lan” e “tang ping”, e que estão gerando novas tendências de consumo na juventude chinesa. Se você não leu o primeiro artigo ainda, clique aqui.
A “guzi economy” (谷子经济,gǔzǐ jīngjì) é a economia dos colecionáveis na China, um mercado em franca expansão que reflete mudanças significativas nos hábitos de consumo dos jovens adultos chineses. Longe de ser um nicho infantil, esse setor atrai um público adulto crescente, ávido por brinquedos, action figures, merchandising e outros itens colecionáveis. Empresas como POP MART (licenciadora do famoso boneco Labubu), 52Toys e CoolPlay são os principais expoentes desse movimento.
A economia dos colecionáveis na China não se resume à compra de objetos: ela fomenta a criação de comunidades, a participação em eventos e a expressão de uma identidade através da coleção. Para muitos adultos, colecionar esses itens é uma forma de reviver a alegria da infância, de se conectar com outros entusiastas e de encontrar um senso de propósito em um hobby que oferece um contraponto à rotina e às pressões do dia a dia.
Kidulting: a nostalgia como mecanismo de enfrentamento
Intimamente ligada à “guzi economy” está o fenômeno de “kidulting”, o ato de adultos se engajarem em comportamentos e consumir produtos lúdicos e juvenis. Em um mundo marcado por incertezas econômicas, pressões sociais intensas e a constante demanda por produtividade, o “kidulting” emerge como um mecanismo de enfrentamento ou fuga da realidade.
Aqui é importante lembrar do que foi caracterizado no artigo anterior, é dizer, das expectativas econômicas dos chineses se deteriorando e as frustrações com o hercúleo sistema de trabalho “九九六” (996, jiǔ jiǔ liù) – das 9:00 am às 9:00 pm, seis vezes por semana. No contexto macroeconômico, a solidificação da China como maior economia da Ásia e segunda maior economia global também veio com a desaceleração do crescimento econômico e um aumento vertiginoso na competição infrutífera (内卷, nèi juǎn), levando a estratégias de fuga do sistema formal de vida em sociedade centrado no casamento, na criação de filhos e na acumulação de patrimônio.
Frente ao descrito acima, o “kidulting” permite que os adultos se desconectem das responsabilidades e preocupações, mergulhando em um universo de fantasia e brincadeira. Essa busca por conforto na nostalgia pode ser vista como uma forma de autocuidado, uma maneira de preservar a saúde mental e emocional em um ambiente muito estressante. Produtos aderentes a essa tendência são acompanhados da ideia de que é necessário encontrar serenidade e alívio na companhia de objetos que evocam simplicidade e afeto. Experiências com pets, por exemplo, também se encaixam nessa tendência de consumo, onde a interação com animais oferece um conforto emocional similar ao proporcionado por brinquedos colecionáveis.
Em suma, o “kidulting” não é necessariamente uma negação da vida adulta, mas uma forma de torná-la mais suportável, injetando doses de alegria e ludicidade que remetem a tempos mais simples. Ao fim e ao cabo, é uma afirmação de que a maturidade não precisa ser sinônimo de seriedade constante, e que a capacidade de brincar e sonhar é essencial para o bem-estar em qualquer idade.
A Economia da Frugalidade: menos é mais
Uma outra tendência importante, que se manifesta do mesmo descontentamento com a pressão social por acumulação de patrimônio entre jovens trabalhadores adultos, é a ascensão de movimentos que pregam a diminuição do consumo ostensivo. A “economia da frugalidade”, embora contraste com a dedicação de gastos discricionários para bens da “guzi economy”, também advém do mesmo ambiente social. A resposta, entretanto, é outra: ao invés de procurar refúgio em objetos inanimados e personagens fictícios, muitos consumidores percebem que não precisam de tanto para viver.
Essa tendência é diretamente relacionada aos conceitos de “bai lan” e “tang ping”, e mais ainda com o conceito japonês de “Satori Sedai” (さとり世代, “geração iluminada”). Para entender sobre esses conceitos, leia o artigo anterior.
“Koukouzu” ¸ Influenciadores Rurais e a Rejeição ao Consumismo Extremo
Em contraste com a “guzi economy”, mas igualmente relevante para entender as dinâmicas de consumo da China moderna, surge o fenômeno 抠抠族 (kōu kōu zú), que se traduz como “tribo da frugalidade”. Este movimento, que ganha força entre jovens, reflete uma tendência de consumo mais consciente e minimalista, muitas vezes impulsionada pela necessidade econômica, mas também por uma rejeição ao materialismo excessivo. Conectado ao conceito de “便当族” (biàn dang zú, “tribo da marmita”), que se refere àqueles que levam suas próprias refeições ao trabalho para economizar, o “koukouzu” representa uma forma de resistência ao ciclo de gastos e aquisições sem fim. Não se trata apenas de economizar dinheiro, mas de despriorizar o consumo como fonte de felicidade e status, buscando valor em experiências momentâneas e na simplicidade.
A ascensão dos influenciadores rurais na China é outra manifestação dessa economia da resistência. Esses influenciadores promovem um estilo de vida minimalista e organizado, inspirando seus seguidores a “serem mais com menos” através de vídeos nos quais a alimentação de uma família do campo é inteiramente feita pela mesma pessoa, utilizando apenas ingredientes locais, e mostrando refeições comunais. Essa tendência reflete uma busca por clareza mental e um senso de controle em um mundo caótico, ecoando o desapego e o abandono da busca de bens materiais para autorrealizar-se. Também é possível notar nesses conteúdos a ênfase em laços sociais e na interdependência de membros da mesma comunidade. O principal exemplo é Li Ziqi, cujo canal no YouTube (rede que sequer é utilizada extensivamente na China) tem 27,6 milhões de seguidores.
Conclusão: Diversidade de Respostas em um Cenário Complexo
As reações gerias da sociedade chinesa às pressões contemporâneas são diversas e multifacetadas. Enquanto a “guzi economy” e o “kidulting” oferecem um refúgio no conforto e na nostalgia – às custas de mais consumo –, a economia da frugalidade, exemplificada pelo “koukouzu” e pelos influenciadores rurais, propõe uma resistência ao consumismo excessivo e uma busca por uma vida mais simples e consciente.
Ambas as abordagens, no entanto, convergem na busca por bem-estar e um senso de controle em um mundo que exige constante adaptação e resiliência. Essas tendências revelam a complexidade das escolhas individuais e coletivas em uma sociedade em rápida transformação, onde a busca por significado e felicidade se manifesta de maneiras muito próprias, mas também alinhadas com movimentos similares a nível regional e global.
No próximo artigo, você verá alguns exemplos de como algumas marcas chinesas mobilizam as mudanças no comportamento dos jovens adultos, subvertendo o branding tradicional para esse público e adquirindo características bastante diferentes de outros mercados globais.
Este artigo faz parte de uma trilogia relacionada a mudanças no comportamento do consumidor chinês que estão transformando a maneira como consumidores se relacionam com marcas.
Introdução: O Despertar de uma Geração
Nas últimas décadas, a China testemunhou um crescimento econômico sem precedentes, elevando milhões da pobreza e prometendo um futuro de prosperidade. No entanto, por trás das fachadas de arranha-céus reluzentes e inovações tecnológicas, uma nova realidade se impõe à juventude chinesa: a de uma competição exaustiva, custos de vida proibitivos e uma crescente sensação de estagnação social. É nesse contexto que surgem movimentos como o “tǎng píng” (躺平) e o “bǎi làn” (摆烂), expressões de uma profunda desilusão e uma rejeição cada vez mais explícita ao modelo tradicional de sucesso. Este artigo aprofundará esses fenômenos, explorando suas origens, suas manifestações e as implicações para a sociedade chinesa e para o mundo.
Tang Ping: A Filosofia do “Deitar-se Reto”
O Grito de Luo Huazhong e a Ascensão do Tang Ping
O “Tang Ping”, que pode ser traduzido como “deitar-se reto” ou “esparramar-se”, ganhou notoriedade em 2021 com a postagem viral de Luo Huazhong. Em seu manifesto, Luo descrevia sua decisão de não trabalhar, adotando uma “vida de baixo desejo” – baixas aspirações que, por sua vez, geram baixos gastos. A postagem rapidamente viralizou, dando origem a discussões acaloradas na internet chinesa sobre o real significado do esforço incessante no trabalho e o que realmente importa na vida. A filosofia contida no ‘tang ping’ representa uma rejeição categórica ao sistema de horas de trabalho “996” (das 9h às 21h, seis dias por semana), uma prática comum em muitas empresas chinesas que exige dedicação exaustiva e, muitas vezes, em detrimento da saúde física e mental. O “tang ping” não é sinônimo de preguiça, mas sim uma forma de resistência passiva, uma recusa em participar de uma corrida de ratos que muitos jovens consideram insustentável e sem propósito.
As Raízes da Desilusão: Fatores Econômicos e Sociais
Postagem do usuário ‘Gentil Viajante’ no Sina Weibo em 17 de abril de 2021, denominada “deitar-se reto é justiça”.
A popularidade do “tang ping” não é um mero capricho, mas um sintoma de problemas estruturais profundos. A intensa competição no mercado de trabalho, o alto custo de vida – especialmente o da moradia nas grandes cidades – e os salários estagnados criam um cenário onde o esforço individual nem sempre se traduz em mobilidade social. A promessa de que o trabalho árduo levaria à ascensão social, tão presente durante o “milagre econômico” chinês, parece cada vez mais distante para as novas gerações. Além dos fatores econômicos, há uma rejeição crescente ao materialismo e às expectativas sociais tradicionais, como o casamento e a instituição da família, que são vistos como fontes de pressão e encargos financeiros. O “tang ping” é, portanto, uma resposta multifacetada a um ambiente que se tornou proibitivamente caro e exaustivo.
Bai Lan: A Arte de “Deixar Apodrecer”
Do Basquete à Atitude Social
Enquanto “Tang Ping” foca na recusa em participar, “摆烂” (bǎilàn), que significa “deixar apodrecer” ou “deixar estragar”, vai um passo além. O termo, originário do basquete da NBA para descrever a prática de “tanking” (perder intencionalmente para obter melhores escolhas no draft), foi apropriado pela juventude chinesa para expressar uma atitude de desistência diante de situações que já estão em declínio ou parecem irremediáveis. É a decisão consciente de não mais lutar contra as adversidades, permitindo que a situação se deteriore ainda mais. “Bai lan” não é uma simples preguiça, mas uma forma de protesto silencioso, uma aceitação quase zen da imperfeição e da falta de controle. É o equivalente a “jogar a toalha” ou “chutar o balde”, mas com uma nuance de passividade e um desapego ao resultado negativo.
A Conexão com a “involução” (内卷, nèijuǎn)
“Bai lan” é uma manifestação direta da “involução” (内卷, nèi juǎn), um termo que descreve a competição interna intensa e improdutiva. Em um ambiente onde todos se esforçam ao máximo, mas os resultados são limitados, a “involução” leva ao esgotamento e à sensação de que o esforço é fútil. Diante dessa realidade, “bai lan” surge como uma estratégia de autoproteção, uma forma de se desvincular das expectativas e pressões que levam ao esgotamento. É uma redefinição do que significa sucesso e bem-estar, onde a paz pode ser encontrada na renúncia à luta incessante.
Movimentos Sociais Relacionados e Implicações Globais
A Resposta Feminista: 4B e 6B4T
O fenômeno da desistência da juventude em cumprir certas expectativas sociais e profissionais não é um fenômeno autóctone chinês, mas sim tem relação direta com o estágio do desenvolvimento econômico e social do país. Anteriormente, as pressões sociais e econômicas também impulsionaram movimentos feministas na China e na Coreia do Sul. O “4B Movement” da Coreia do Sul (sem casamento, sem filhos, sem namoro, sem sexo) e seus derivados na China, como o “6B4T Movement” (de boicote a produtos ligados a papéis de gênero), refletem uma rejeição às expectativas tradicionais de gênero e à pressão para se casar e ter filhos. Na China, o “财力” (cáilì, dote), um encargo financeiro significativo para o noivo, intensifica essa rejeição, criando um ciclo vicioso onde mulheres se recusam a casar com homens sem estabilidade financeira e homens evitam o casamento por não terem condições de arcar com o dote.
Uma “Ressaca Social” Global
Embora “tang ping” e “bai lan” tenham uma roupagem “genuinamente asiática”, influenciada por traços sociológicos das culturas de base confucionista (honra, moral, apego familiar, sucesso material por meios tradicionais), eles não são fenômenos isolados. Movimentos semelhantes, como 삼포세대 (“San-po Sedae”, “geração das três desistências”) na Coreia do Sul e さとり世代 (“Satori Sedai”, “geração iluminada”) no Japão, refletem uma “ressaca social” entre as camadas jovens que também ocorre em grandes cidades da Europa, da América do Norte e, em diferentes medidas, no mundo em desenvolvimento. A intensidade da adesão da população à ideia de que o trabalho gera ascensão social e deve ser protegido a qualquer custo, mesmo em detrimento da saúde física e mental dos trabalhadores, é alta em tempos de “milagre econômico”. No entanto, quando essa promessa se mostra vazia, a desilusão pode levar a movimentos como “tang ping” e “bai lan”, que, longe de serem uma “falta de energia” ou “preguiça”, são guiados pela despriorização racional de expectativas sociais que se tornaram proibitivamente caras para os jovens.
Conclusão: O Futuro da Sociedade Chinesa e o Desafio das Expectativas
“Tang ping” e “bai lan” são mais do que meras tendências; são expressões de uma profunda transformação social e cultural na China. Eles desafiam as noções tradicionais de sucesso e felicidade, e levantam questões importantes sobre o futuro do trabalho, da família e da sociedade. O governo chinês, que já criticou essas atitudes como improdutivas e irresponsáveis, enfrenta o desafio de lidar com uma geração que busca um novo equilíbrio entre aspirações individuais e expectativas sociais. A desilusão da juventude chinesa, manifestada nesses movimentos, é um lembrete de que o crescimento econômico por si só não garante o bem-estar social, e que a busca por significado e propósito transcende as métricas de produtividade e consumo. O futuro da China dependerá, em grande parte, de como ela irá responder a essas novas realidades e às aspirações de sua geração mais jovem.
Neste artigo de opinião, vamos refletir a respeito da recente carta do governo de Donald Trump ao Brasil, sobre as transformações na ordem internacional nas últimas décadas, e sobre a necessidade do Brasil de dar cada vez mais atenção à articulação com a China e com os demais membros dos BRICS em prol de um redesenho da estrutura de governança mundial a favor de seus interesses nacionais.
Em 10 de julho de 2025, Donald Trump anunciou, em uma carta oficial, a taxação de 50% sobre todos os produtos exportados pelo Brasil aos Estados Unidos a partir de 1 de agosto. Nessa carta, houve citação direta ao tratamento que a administração Lula III (2023-hoje) está dispendendo ao ex-presidente Jair Bolsonaro, acusado de planejar um golpe de estado para reverter o resultado eleitoral ao final de 2022. Ademais, mencionaram-se as ações do Supremo Tribunal Federal (STF), a corte constitucional brasileira, a respeito do cerceamento de “liberdades” na atuação das grandes empresas de plataformas digitais de redes sociais (Meta, X, outras) no Brasil, no que tange ao espalhamento de notícias falsas e à suspensão e exclusão de perfis considerados disseminadores de tais notícias. Esse anúncio vem quase imediatamente depois da reunião de cúpula dos BRICS no Rio de Janeiro, realizada em 6 e 7 de julho.
A postura de Donald Trump II (2024-presente): plutocracia, antiglobalismo e beligerância
O presidente estadunidense Donald Trump inaugurou uma administração fortemente dependente do apoio dos “novos capitães” do capitalismo nacional: as plataformas de redes sociais digitais. Na seara da economia real, capitalizou o discurso de trazer “de volta” os empregos que foram terceirizados para países com mão de obra mais barata (por razões de racionalidade econômica e estratégia de custos) nas últimas décadas. Essa retórica garantiu sua primeira vitória, e voltou mais inflamada e com nuances mais xenofóbicas na sua segunda e atual temporada na Casa Branca.
Donald Trump testou a estratégia de rompimento com a estrutura das relações comerciais dos Estados Unidos com seus parceiros México e Canadá já no seu primeiro mandato, dissolvendo o NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio) e negociando o USMCA (Acordo Estados Unidos-México-Canadá). No seu segundo mandato, essa estratégia se exacerbou, e Trump transformou ameaças tarifárias em uma arma comumente utilizada para pressionar reorganizações de relações bilaterais a favor dos EUA (isto é, em teoria). O primeiro e mais óbvio alvo destas ações foi a China, país com o qual os Estados Unidos tiveram grandes dificuldades de extrair reações ou suscitar interesse em negociar. Após árduas negociações do segundo escalão de burocratas de ambos os países, as duas nações chegaram a um acordo recentemente. Agora, o alvo desse instrumento político passou para o Brasil, a União Europeia, o México, a Coreia do Sul e outros países, muitos aliados militares dos Estados Unidos.
Esta figura política conquistou altos níveis de confiança no segundo mandato por conta de sua passagem ilesa por investigações judiciais relacionadas à posse indevida de documentos públicos em propriedade privada, e seu papel na invasão e destruição do Capitólio por seus apoiadores quando perdeu as eleições em 2020-2021. Dessa forma, foi possível compreender que o sistema eleitoral, judicial e político dos Estados Unidos não é tão sólido quanto se imaginava décadas atrás, e a possibilidade de um líder, por mais abastado e apoiado por bilionários que seja, dobrar e remoldar o sistema a seu favor, outrora tão distante, agora é uma realidade.
Essa percepção de “O Estado sou eu” se traduziu em desmonte estatal, com o convite à entrada na Casa Branca do seu aliado bilionário e excêntrico Elon Musk e a “caça às bruxas” em departamentos estatais. Nesse aspecto, o caso mais significativo foi a praticamente completa interrupção do trabalho da USAID, agência de cooperação internacional dos Estados Unidos, responsável, entre outras coisas, pelo financiamento de distribuição de medicamentos para a AIDS em países da África Subsaariana. Em janeiro de 2025, Trump assinou sua segunda ordem de retirada dos Estados Unidos da membresia à Organização Mundial da Saúde (OMS), algo que já havia feito em 2020 (em meio à pandemia de COVID), revertido pela administração democrata seguinte.
A mesma visão do Estado a serviço de interesses econômicos e ideológicos da classe que se apoderou de suas instituições também incentivou o fortalecimento do ICE (U.S. Immigration and Customs Enforcement), departamento estatal que funciona como um caçador de imigrantes ilegais. Popular discurso populista de direita, o ódio ao estrangeiro tornou-se política de governo com a implementação de metas numéricas de deportações por dia, e do desmantelamento de proteções a imigrantes ilegais em situação vulnerável. O sistema de expurgo de imigrantes ilegais passou a afetar não apenas os indocumentados, mas também cidadãos estadunidenses de ascendência latino-americana e asiática, bem como usar de táticas cada vez mais explícitas de amedrontamento e intimidação, como agentes da ICE vestidos à paisana realizando “blitz” de imigração em cidades como Los Angeles – o que levou a protestos massivos recentemente. Interessantemente, estatísticas apontam que mais de 40% da mão de obra da economia dos Estados Unidos é composta por imigrantes, muitos indocumentados, o que denota que não há apego à lógica econômica nas ações desta administração federal estadunidense.
De volta à seara internacional, Trump deu continuidade às administrações anteriores (tanto democratas quanto republicanas) na política estadunidense de pressão e agressão a países não-alinhados no Oriente Médio, utilizando Israel, recentemente radicalizado por questões políticas internas, como braço direito. Em junho de 2025, quando a administração sionista ataca Teerã, a capital do Irã, uma metrópole de quase 10 milhões de pessoas, os Estados Unidos não apenas tiveram uma chance de exercitar seu músculo militar atacando três instalações nucleares do Irã e reafirmando seu alinhamento com o regime israelense, mas também de projetar-se como negociador de um cessar-fogo entre os dois países – que, na prática, foi provocado pelo amedrontamento da administração de Tel Aviv, cujo “Domo de Ferro” falhou repetidas vezes em deter mísseis iranianos e sofreu perdas de vidas e destruição em cidades importantes como Haifa.
Em resumo, o segundo mandato de Donald Trump combina apoio de grandes grupos capitalistas da nova economia digital nacional, uma grande força de modificar instituições políticas federais à sua própria imagem e discurso, uma intenção de desestabilizar a ordem institucional global criada outrora pelos próprios Estados Unidos, e de reafirmar os Estados Unidos como nação imprescindível no tabuleiro internacional. Com a instrumentalização da guerra de tarifas e dos expurgos a imigrantes em uma economia baseada em mão-de-obra estrangeira, Trump também demonstra o descompromisso com a economia real nacional, ferindo o poder de compra dos cidadãos, desorganizando cadeias de valor nacionais e internacionais bem estabelecidas há décadas, e transferindo a conta das suas ações para as classes menos favorecidas.
Quem tem medo do valentão? Da Pax Americana até hoje
American Progress, John Gast, pintura a óleo (1872)
Vamos refletir sobre o histórico recente da posição dos Estados Unidos no mundo, em contraste com os países dos BRICS durante o mesmo período.
Pax Americana: emergindo como grande vitorioso das duas grandes Guerras Mundiais (1914-1918; 1939-1945), os Estados Unidos não apenas enriqueceram fortemente com o esforço industrial para sustentar a máquina bélica durante as guerras, mas também moldando o tabuleiro mundial após o fim do período de guerras. Alemanha (apenas sua parte ocidental até 1990) e Japão, anteriores inimigos do bloco dos aliados, agora estavam submetidos a um regime de ocupação militar estadunidense através de bases militares, e seus novos governos foram desenhados à luz da grande estratégia estadunidense de “capitanear campeões”: investimentos massivos em reconstrução foram feitos nesses dois países, em troca do compromisso de não militarização – ambos países detêm “forças de defesa” que não são exércitos formais até o dia de hoje. Durante esse processo, os Estados Unidos construíram do zero, ou fortaleceram, diversas instituições internacionais com características de “governo global”, como a Organização Mundial do Comércio, a própria Organização das Nações Unidas, e o par inseparável Banco Mundial e Fundo Monetário Internacional. Isto, aliado à nova realidade da queda da libra esterlina e ascensão do dólar estadunidense como moeda de referência para comércio e finanças internacionais, estabeleceu um período de “Pax Americana”, na qual a hierarquia internacional era clara – no Ocidente, quem mandava eram os Estados Unidos, e todo esforço político internacional deveria ser voltado para expandir esse sistema internacional e conter o avanço de ideias concorrentes, principalmente advindas do comunismo e dos países-baleia inimigos, a União Soviética e a China;
Transição (1974-1991) e Expansão (1991-2001): nas décadas que seguiram às guerras mundiais, os Estados Unidos apoiaram direta e indiretamente a reversão de cenários políticos em diversos países do Sul Global, quando esses cenários se constituíam como favoráveis a interesses antiamericanos. Aqui podemos citar dois casos: o Chile (1973) foi um caso extremamente bem-sucedido dessa política, com o bombardeamento do palácio presidencial La Moneda e a instauração de uma ditadura militar ultraliberal centrada em Augusto Pinochet, que governou até 1991; o caso do Vietnã, no qual os Estados Unidos fracassaram ao se envolverem diretamente para “virar a mesa” na disputa entre o sul capitalista e o norte comunista, e perderam não apenas muitos jovens em batalha, mas também geraram protestos nacionais contra a guerra e o nascimento de uma contracultura social fora dos padrões e normas da produção, expansão e acumulação de capital. Porém, as principais vitórias dos Estados Unidos nesse período foram outras. Primeiro, o reconhecimento da República Popular da China como “a China”, em detrimento do regime de Taipei na ilha de Taiwan, e o estabelecimento de relações comerciais com esse país em 1974, na visão de Washington foi uma vitória pois “reintegrou” a economia do maior país do mundo à ordem mundial, agora comandada claramente pelos Estados Unidos. Por outro lado, a queda do muro de Berlim em 1990 e a dissolução da União Soviética em 1991, após anos de desgaste e crescentes ineficiências em seu sistema planificado de produção econômica, foram dois episódios vistos como uma coroação da vitória dos Estados Unidos como líder da ordem mundial capitalista e liberal. O período entre 1991 e 2001 foi visto como um período de unipolaridade global praticamente inegável, com os Estados Unidos exportando sua cultura popular, sua manufatura e seus ideais para cada vez mais lugares;
Rachaduras nas paredes do império (2001-2009): O atentado terrorista de 11 de setembro de 2011 em Nova Iorque foi um episódio icônico na demonstração dos limites e fragilidades do império estadunidense. Rodeado por dois oceanos que proporcionam alto poder parador para ameaças militares tradicionais, a capital econômica do país mais poderoso do mundo à época teve dois prédios destruídos por um ataque terrorista realizado por alguns poucos indivíduos de diferentes partes do Oriente Médio, ressentidos com a atuação militar dos Estados Unidos em sua própria região e com a exportação cultural forçada de um modelo de vida conflitante com os princípios de diversas vertentes de pensamento no Islã. Inaugura-se aqui uma fase de grande paranoia estratégica, com recrudescimento do racismo na sociedade estadunidense, e ações militares desajeitadas no Iraque e no Afeganistão. Enquanto os Estados Unidos gastavam dinheiro e perdiam prestígio, a Rússia se reestabelecia como país, assentando-se nas ruínas nem tão destruídas da União Soviética; a China, ainda mormente rural e pobre, dava sinais de que seu crescimento econômico, sempre integrado à economia mundial, alçaria voos ainda mais altos; a Índia começava a entender seu papel de líder do Sul Global em fóruns internacionais e, após décadas de governos populistas e fechados à economia mundial, integrava-se a ela; e, por fim, um grande país latino-americano chamado Brasil, livre desde 1985 de uma ditadura militar apoiada diretamente por Washington, implementava um plano de estabilização inflacionária que seria internacionalmente estudado como caso de sucesso. Em 2008, com a crise do subprime imobiliário nos Estados Unidos, esses países conseguiram, de uma forma ou de outra, evitar o efeito devastador do alastramento da crise para o sistema financeiro e comercial mundial, apresentando crescimento econômico resistente ou, pelo menos, menores impactos do que o esperado nessa estrutura econômica global. Estavam aí as sementes de uma nova ordem mundial.
BRICS: Por que incomodamos tanto?
O BRICS foi oficialmente criado em 16 de junho de 2009, durante a primeira cúpula do grupo realizada em Ekaterinburgo, na Rússia. Esse grupo reunia um número seleto de países com características bastante únicas: grandes populações, vastos territórios, economias nacionais expressivas em suas regiões e em processo de crescimento, e políticas externas não alinhadas diretamente aos Estados Unidos. Este grupo contrastava, e contrasta, principalmente com o G7, clube internacional existente desde os anos 1970, composto dos Estados Unidos e de seus aliados mais próximos, coincidentemente as maiores economias do mundo.
Nos 15 anos entre 2009 até 2024, os maiores países dos BRICS mudaram substancialmente seus papéis no mundo, ampliando não apenas sua participação na produção econômica global, mas também sua influência em assuntos internacionais. A Rússia se reestabeleceu como potência militar e passou a tolerar cada vez menos os avanços da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em direção ao Leste europeu; enquanto isso, reestabeleceram uma rede de aliados no Sul Global (Síria, Irã, diversos países africanos) e demonstraram poderio militar e habilidade estratégica revertendo conflitos militares a seu favor, como na Guerra da Síria (2011-aprox.2020). Em 2010, a China superou o Japão em termos de produto interno bruto (PIB) nominal, após 40 anos de liderança japonesa no Leste Asiático, e através da sua presença e aderência às regras do sistema econômico internacional criado pelos próprios Estados Unidos, conseguiu projetar-se como destino ideal para abertura de plantas industriais e produção de manufaturados para empresas ocidentais, principalmente estadunidenses, pelas facilidades oferecidas nas ZEE (Zonas Econômicas Especiais) em sua costa e pelos baixos custos de contratação de mão de obra local. Em pouco tempo, a China tornou-se a irreversível “fábrica do mundo”. O Brasil, por sua vez, após estabilizar-se em termos institucionais e macroeconômicos com inflação sob controle e dívida externa liquidada, surfou habilidosamente no “boom” de commodities como minério de ferro, petróleo cru e soja, fornecendo importantes produtos da base da urbanização da população da China. A Índia também começou a decolar sua economia baseada em serviços, utilizando de instituições de ensino superior altamente focadas em ciências exatas, aplicando profissionais qualificados à construção de um parque de serviços de tecnologia da informação em Bengaluru, no Sul, e exportando o excedente para outros países desenvolvidos – não sem receber remessas internacionais de valor, é claro. Especialmente China, Índia e Brasil foram bem-sucedidos em levantar dezenas de milhões de pessoas da pobreza extrema, engordando suas classes médias.
Nos mesmos 15 anos, os Estados Unidos passaram por três grandes processos: a aceleração da concentração de renda, a intensificação de conflitos raciais e identitários na opinião pública e a ascensão do “Vale do Silício” e das plataformas de redes como novo baluarte econômico. A economia estadunidense mostrou uma tendência de concentração de renda após a crise do subprime em 2008; o índice Gini, que mede a desigualdade de renda de uma população, saltou de 40,6 em 2009 a 42,0 em 2024. Vale mencionar que mudanças significativas nesse índice, que vai de 0 (totalmente igualitário) a 100 (totalmente desigual), tendem a demorar gerações para acontecer. Ao mesmo tempo, a “nova corrida do ouro” pelo desenvolvimento de tecnologias ligadas ao digital e à internet aqueceram sonhos e ambições, reconfigurando a maneira como os Estados Unidos acumulam capital e integrando, com seu arcabouço de projeção cultural e tecnológica, toda a população mundial com acesso à internet às suas próprias plataformas. Aqui podemos citar o Facebook como a primeira grande plataforma digital de rede social dominante. Essas plataformas se tornaram um novo instrumento na política estadunidense de dominação global, à medida que a economia digital exigia o controle na produção e no acesso a dados de internautas para vender produtos e serviços a eles. Ao mesmo tempo, empregos tradicionais na indústria e em serviços ora despareciam, ora tornavam-se ainda menos bem pagos, em uma época na qual a distribuição de conteúdo via algoritmo (isto é, controlada diretamente pelas empresas mantenedoras das plataformas digitais em si) deu o ensejo a lutas identitárias. Essas lutas passaram a extrapolar o limite do mundo digital e formar movimentos, como o Black Lives Matter (2013), e permitir a organização de protestos massivos contra brutalidade policial sobre a população afro-estadunidense, historicamente escravizada e/ou reprimida de forma declarada.
Nos anos de 2023 em diante, consolidou-se o primeiro grande adversário das plataformas de redes sociais estadunidenses, já num cenário no qual essas redes dominam grande parte da formação de opinião pública e do consumo dos cidadãos globais. O aplicativo TikTok, versão internacional do Douyin, mantido pela empresa chinesa ByteDance, tornou-se o segundo aplicativo mais popular nos Estados Unidos, com seu modelo inovador de feed de vídeos e um algoritmo altamente responsivo a criadores pequenos. Em outras palavras, cidadãos estadunidenses já dedicavam mais tempo de tela ao TikTok que ao Instagram. Nesse aplicativo, que trazia o público internacional a interagir mais frequentemente com conteúdo criado por estadunidenses e vice-versa, passaram a viralizar vídeos demonstrando que os Estados Unidos apresentam um padrão de vida evidentemente inferior a alguns países da Europa, senão do próprio Sul Global, quando falamos do cidadão comum: sem assistência médica pública, sem direitos trabalhistas, sem educação pública, sem transporte público. Entendendo o perigo que esse contato provocaria à moral da população estadunidense a longo prazo, já em 2020 começaram conversas e ações públicas por parte do governo federal dos Estados Unidos sobre banir o aplicativo TikTok em território estadunidense. Neste ano, Donald Trump era o presidente.
Em paralelo a tudo isso, em 2023, na cúpula dos BRICS em Joanesburgo, África do Sul, o governo brasileiro propôs discussões a respeito da criação de um sistema de pagamentos alternativo à ordem global baseada no dólar estadunidense, mas também apoiada pela infraestrutura do sistema SWIFT de pagamentos internacionais, pelo uso do dólar como moeda de reserva internacional, e pela presença física nos Estados Unidos das mantenedoras de bandeiras de cartões e bancos intermediadores de transações internacionais. Lembremos que a existência desse sistema centrado no USD permite a operacionalização de sanções financeiras a líderes de governos opositores, como a Rússia, como resposta a ações contrárias aos interesses estadunidenses. Estava armado o cenário para a desdolarização mundial, que está em curso neste momento.
Em suma, os últimos 15 anos marcaram uma aceleração vertiginosa na redistribuição da polaridade econômica global a favor dos mercados do Sul Global, centrados nos BRICS, uma intensificação na intencionalidade desse grupo em reformar a ordem econômica mundial, e no crescimento de conflitos sociais e distributivos nos Estados Unidos. Como pano de fundo, a digitalização da vida urbana e a facilitação do acesso a informações de fonte propagadora descentralizada, no estilo “day in the life“, também permitiu que cidadãos dos mais variados tipos e origens no mundo entendessem melhor como funciona a vida em outros lugares, e dos imperativos que moldam suas próprias vidas. Muitos desses cidadãos passaram a perceber que os Estados Unidos não eram exatamente o símbolo da liberdade e prosperidade que pareciam ser até 2001, e estavam se distanciando dessas ideias e recorrendo cada vez mais ao poder bruto para manter-se relevante.
Por que pivotar para a Ásia é essencial agora?
Em frente a todos os movimentos descritos acima, torna-se essencial ter uma visão balanceada sobre os reais ganhos que o Brasil pode obter da reconfiguração da ordem mundial. Como país partícipe desse processo, é natural que ocorram atrito com os perdedores da festa, os Estados Unidos. Ao mesmo tempo, está em curso um processo muito mais intenso de rearranjo de relações comerciais, financeiras e políticas entre Brasil e China.
A China é o maior parceiro comercial do Brasil desde 2009, e o maior investidor em termos de IED (investimento estrangeiro direto) desde 2010, com recordes sendo atingidos desde 2021. A presença chinesa no Brasil permitiu desenvolvimentos infraestruturais únicos em áreas estratégicas para a economia nacional, como petróleo e gás natural, energia elétrica e malha ferroviária. Em 2025, inaugura-se uma nova fase, na qual bens de consumo, serviços e marcas chinesas também ganham popularidade ou lideram preferência entre consumidores brasileiros (Huawei, Xiaomi, BYD, TikTok).
Em Ascensão e Queda de Grandes Potências, Paul Kennedy (1987) descreve o processo de “troca de bastão” entre potências como um ciclo de super expansão militar e declínio econômico relativo. Analisando o cenário global do presente, fica evidente que esse processo não apenas está em curso, mas está se acelerando sobremaneira com o segundo mandato de Donald Trump. É possível prever que os Estados Unidos se envolverão em cada vez mais conflitos militares em cenários nos quais conseguem sustentar o seu complexo industrial-militar em carnificinas longe de casa; os bombardeios do Irã de 2025 são um bom exemplo de como isso pode se construir. Outros países como Coreia do Norte, Belarus e Iraque, certamente continuarão na mira dos Estados Unidos quando for útil e necessário ingressar em novos conflitos para reafirmar pujança. Por outro lado, o crescimento econômico dos Estados Unidos na era das plataformas digitais e da superconcentração de renda em torno de bilionários está perdendo sua capacidade de ter um efeito “trickle down” significativo; pode-se prever também que o emprego de inteligência artificial para ganhos de produtividade com cada vez menos aplicação de trabalho humano também pode estrangular desenvolvimento social real, gerando bolhas e especulação.
Quando revisamos a história das relações bilaterais Brasil – Estados Unidos no contexto da Doutrina Monroe (“América para os americanos”, leia-se estadunidenses), vemos que nosso desenvolvimento econômico nunca foi totalmente dependente dos Estados Unidos, seja como via de investimento ou como parceria em comércio internacional. Com uma indústria nacional significativa e desenvolvimento tecnológico moderado, ao longo dos anos o Brasil construiu fortes relações comerciais com a Argentina, com diferentes países membros da União Europeia, com o Japão e com economias grandes do Oriente Médio. Isso permitiu diversificar de fontes de receita e dirimir o tamanho dos riscos de ações irresponsáveis dos Estados Unidos – algo que países latino-americanos como México e Chile não têm a possibilidade de fazer. Por outro lado, o histórico dos Estados Unidos de intervenção militar e política em países da América Latina é bem conhecido, dividido entre invasão direta (exemplo: República Dominicana em 1965), apoio a golpes (exemplo: Guatemala em 1954), presença militar (exemplo: Nicarágua entre 1912 e 1933), ações da CIA (exemplo: Operação Condor de repressão a elementos comunistas na Argentina, Paraguai e Uruguai). Em contrapartida, como já dito acima, a intensificação de relações do Brasil com a República Popular da China trouxe ganhos significativos ao Brasil em um curtíssimo intervalo histórico. A política de Pequim de não-intervenção em assuntos internos de seus parceiros econômicos impera nesse relacionamento bilateral, princípio este que também ressoa na política externa brasileira como um todo.
Conclusão: O que temos a perder?
É imperativo reconhecer que os eventos delineados na introdução não são incidentes isolados. Longe disso, tais acontecimentos servem como catalisadores imediatos e tangíveis de uma reconfiguração geopolítica e econômica global mais ampla. Eles expõem as tensões crescentes na ordem mundial, acentuadas pela postura antiglobalista e beligerante da segunda administração de Donald Trump, e simultaneamente sublinham a urgência da estratégia brasileira de pivotar em direção a blocos emergentes como o BRICS.
Seria tolo dizer que o Brasil não corre riscos nesse processo. O anúncio de taxação e a menção direta ao comportamento da corte constitucional de Brasília, embora siga padrões de remédios aplicados por Trump a outros países, pode sim gerar desbalanços econômicos a curto prazo e agitar tensões políticas internas ao Brasil. Por outro lado, uma alienação internacional completa certamente fecharia portas ao Brasil no que tange a alianças estratégicas com países aliados aos Estados Unidos, sobretudo na Europa, em outras áreas, como cooperação científica, militar e cultural. Por fim, a projeção de uma imagem de “pária internacional” na opinião pública internacional seria negativa ao Brasil, e causaria ainda mais estranhamento com a ideia do Brasil como locutor válido em fóruns internacionais.
Há de realizar-se uma análise multifacetada, no entanto, considerando seriamente os ganhos líquidos desse ardil. Se o projeto nacional do Brasil é tornar-se um país mais rico e igualitário do que é agora, com desenvolvimento industrial baseado em energia verde, capitaneando liberdades individuais enquanto se incentiva a resiliência de laços sociais, fortalecendo direitos cívicos e sociais e integrando à sociedade de maneira justa as populações historicamente menos favorecidas, o cálculo é mais claro. No entanto, se o conceito de desenvolvimento econômico for necessariamente medido em unidades anuais, com base somente em modelos estatísticos, taxas e porcentagens, muitas dessas histórias continuarão escondidas no cemitério social metaforicamente instalado abaixo do edifício da Bolsa de Valores de São Paulo.
Instagram vs TikTok: A Comprehensive Comparison Of Their Audience, Features & Marketing Potential – Billo, accessed July 12, 2025, https://billo.app/blog/tiktok-vs-instagram/
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